quarta-feira, 16 de maio de 2007

Animal feroz

Com a devida vénia transcreve-se um artigo do Publico de hoje:

Os calcanhares de Sócrates

Sócrates revelou uma vez que tinha dentro de si um "animal feroz". Era uma confissão, não um alarde
Definitivamente, Sócrates não é Aquiles. Aquiles tinha apenas um ponto fraco: o calcanhar por onde a mãe o terá segurado quando o mergulhou nas águas do Estige. Não sabemos por onde suspenderam José Sócrates quando lhe deram o banho de invulnerabilidade política. Mas deixaram-lhe muitos calcanhares. Não vou ser exaustivo. Bastam-me dois para sugerir que talvez um dia nos admiremos por ter julgado fatal a reeleição deste governo.
Em Lisboa, não foi só o calcanhar de Sócrates que ficou à mostra, mas é o dele que agora interessa. Perante uma câmara municipal a desfazer-se mais rapidamente do que as dunas da Caparica, o PS passou meses sem iniciativa, a falar desafinado. E quando houve que arranjar candidato, sob pressão do avanço de Helena Roseta, foi preciso esvaziar o Governo. No poder, com o partido e o Estado na mão, Sócrates não foi capaz de dar liderança e disciplina ao PS em Lisboa. Tal como nas presidenciais, ei-lo confrontado com uma candidatura dissidente. É verdade que Alegre e Roseta não fazem mexer as grandes pedras do aparelho do partido. Aí, ninguém se agitará enquanto houver migalhas a cair da mesa de S. Bento. Mas com o eleitorado, a história parece ser outra, como se viu com a votação de Alegre e com o que, segundo consta, algumas sondagens prometem a Roseta (embora o calendário mágico do governo civil possa resolver a questão). Por mais que lhe falem da "esquerda moderna", os eleitores de esquerda do PS têm esta tendência para se tresmalhar à vista da "antiga".
Finalmente, há a candidatura de António Costa (ainda não oficialmente confirmada quando escrevo). A relação de Sócrates com os candidatos socialistas é curiosa: não consegue impedir os dissidentes, nem convencer-nos de que está com os oficiais. Estes últimos suscitam sempre as mesmas especulações rocambolescas: ou foram eles que se impuseram a Sócrates, ou foi Sócrates que aproveitou para os "queimar". Assim se passou com Carrilho e com Soares. Assim já se diz que é o caso com Costa. Sócrates tem-se deste modo dispensado de partilhar o caldo da derrota com os seus candidatos. Seria um Pirro ao contrário, tirando força dos revezes. Mas se a lógica é essa, que esperar para 2009? Vai Sócrates deixar o líder do PSD ganhar as eleições para melhor o "queimar" no governo? Tudo começa a ser possível.
O outro calcanhar apareceu na Madeira. Não me refiro à quase extinção local do PS. Refiro-me à quarentena que a irritação de Sócrates impôs ao governo da ilha. Não é bem assim? É pelo menos o suficientemente assim para que o Presidente da República se tivesse oferecido como medianeiro, e para que Jardim se sentisse autorizado a dar lições sobre o modo como os políticos devem saber representar vários papéis. Sócrates, como terá notado quem o viu em acção no Parlamento, não representa. Zanga-se a sério. Uma vez, revelou que tinha dentro de si um "animal feroz". Era uma confissão, e não um alarde. Há ali um excesso de sensibilidade e uma falta de paciência que seriam tocantes se não fossem embaraçosas, porque autorizam as maiores dúvidas sobre a sua capacidade para reconhecer que um debate tem dois lados, ou para mudar de opinião quando for preciso. Que aconteceria numa situação de governo minoritário, em que fosse necessário negociar e sofrer?
E estes calcanhares não ajudarão Sócrates a caminhar quando a sua fórmula de viabilização do Estado social - pagar mais e receber menos - chegar ao extremo, e se descobrir que a economia não sai do coma. É verdade que a comparação com Barroso e Santana o continua a beneficiar. Mas aí, Sócrates poderá ser vítima do seu sucesso. No descrédito dos seus antecessores, para além de outras limitações, contou o medo que os atormentou de arriscar a "paz social". Sócrates, com as suas "durezas", provou que era um receio exagerado. Terá convencido a liderança do PSD de que o país está disponível para ir mais além, com uma política que não seja só de restrições, como esta, mas de oportunidades? As sondagens continuam a ser lisonjeiras para o PS. Mas a falta de alternativa ajuda. A popularidade política é como a água num sistema de vasos comunicantes: só sai de um quando pode ir para outro. Se o PSD tiver um rasgo, talvez este Governo se revele aquilo que, no fundo, sempre ameaçou ser: a segunda parte da odisseia de Guterres, em que a mesma equipa regressou para retirar de circulação os cheques sem cobertura que tinha passado aos portugueses antes de 2001. E nesse caso, pode bem ser que o castigo que, pelo calendário eleitoral normal, deveria ter acontecido em 2003 aconteça em 2009.
Rui Ramos, Historiador

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